#5. Café com Allu mãe.
As vezes a gente precisa parar de dançar o quadradinho de oito e pensar um pouquinho.
HĂĄ uns dias, cometendo o mesmo ato que ainda vai me derreter o cĂ©rebro (mexendo no TikTok), eu me deparei com o machismo em forma de vĂdeo, embalado na narrativa da ausĂȘncia paterna. Nada de novo pra uma pessoa cronicamente online o suficiente pra saber que a melhor forma de atacar mulheres Ă© se apoiar no âela nĂŁo teve pai presente, logo Ă© uma vagabunda desesperadaâ. E logo me veio o gosto agridoce na mente da obra de Luce Irigaray: A questĂŁo do outro.
Nessa obra, Irigaray discorre sobre como a existĂȘncia das mulheres sempre foi apoiada na imaginação dos homens. E ao chegar ao fim da leitura, resolvi escrever esse texto antes que perdesse o fio da meada.
Afinal, com essa onda de conservadorismo em massa na internet â e atĂ© antes disso â, mulheres que se desviam (ou se desviavam) do que, desde a Antiguidade, Ă© idealizado pelos homens para si sĂŁo duramente criticadas. Mas agora a misoginia vem em dobro. E vem vendida, com alto valor lucrativo, disfarçada de conselho e em formato de curso online em 5 parcelas de 90 milhĂ”es de reais e 99 centavos, mon amour!
A mĂdia vende a passividade da mulher como fetiche. Como um trofĂ©u que sĂł tem valor se estiver intocado e puro, Ă espera de um homem para tomĂĄ-lo para si e expandir sua coleção. A gente Ă© canalizada por inteiro desde sempre. Ensina-se aos homens, desde novos, que a Ășnica coisa que se salva â e Ă© relevante â em uma mulher Ă© a aparĂȘncia. O quanto somos convenientes com base no quanto suprimos seus desejos.
NĂŁo Ă© difĂcil ouvir, hoje em dia, que somos carentes por atenção se temos autenticidade, que temos pai ausente se possuĂmos cabelo colorido, que somos problemĂĄticas por usarmos piercings. Que sĂł somos tratadas como objetos porque nos comportamos como taisâŠ
E ah, a cereja do bolo:
A crença de que a equidade entre homens e mulheres nĂŁo funciona â e que, na verdade, o resgate de papĂ©is tradicionais de ambos os gĂȘneros seria a solução mĂĄgica para as crises sociais, polĂticas e econĂŽmicas.
Irigaray escreve ainda que a linguagem que mais se atenta ao outro Ă© a da menina. Frases como: âMamĂŁe, brinca comigo?â ou âMamĂŁe, posso te pentear?â revelam como, desde cedo, as mulheres sĂŁo programadas para viver a dois. E essa tendĂȘncia nĂŁo desaparece â ela evolui. Mesmo na adolescĂȘncia ou na vida adulta, a linguagem feminina segue comprometida com o vĂnculo. Ao serem convidadas a formar frases com palavras como com ou junto, elas tendem a responder: âNĂłs vamos morar juntos para sempreâ ou âVou sair com eleâ. Enquanto isso, meninos, propostos Ă mesma atividade, dizem: âEu escrevi com meu lĂĄpisâ, âEu e minha guitarra nos damos bemâ, denunciando a ausĂȘncia dessa necessidade do outro â que, no nosso caso, nos Ă© vendida como prioridade.
Hoje mesmo, conversando com uma tia que tem um quĂȘ de conservadora, comentei que priorizava meu avanço acadĂȘmico e profissional ao casamento. E, ao mesmo tempo que vi minha avĂł â que vive sob um casamento infeliz, limitante e ultraconservador â sorrir, fui rebatida imediatamente com um: âNĂŁo, mas toda mulher tem que ter um homem, sim.â E confesso que foi um pouco broxante. Um pouco muito.
O ponto disso tudo Ă© um sĂł: entre o vĂdeo no TikTok atĂ© Luce Irigaray, a ideia que prevalece Ă© a de que sobre nĂłs recai a necessidade de sermos tranquilas, bonitas e submissas ao estigma de âlado mais fracoâ, âdependentes do outroâ. A ideia JURĂSSICA da falta de independĂȘncia feminina, que â quando aplicada a um homem â Ă© vangloriada. Um homem 30+, solteiro, bem-sucedido, Ă© uma joia rara. Uma mulher com as mesmas caracterĂsticas Ă© uma bomba-relĂłgio.
ReferĂȘncia:
IRIGARAY, Luce. A questĂŁo do outro. Labrys, estudos feministas, n. 1-2, p. 1â12, 2002. DisponĂvel em: http://www.labrys.net.br/labrys1/irigaray.htm. Acesso em: 11 de maio, 2025.
Texto maravilhoso.
Eu nĂŁo sou um estudioso do feminismo e, quanto homem cis, nĂŁo tenho muito o que dizer. Mas, o seu texto me remeteu a um post que vi no Linkedin essa semana.
Nele, a autora comentava o caso da Ilze Scanparini e a cobertura do conclave. Jå faz um tempo que não vejo TV, mas me parece que houve uma situação desagradåvel entre ela e o William Bonner.
O que a autora comentava, é que existe uma construção social sobre a performance do que deve ser uma mulher, como agir, como se comportar... E quando essa mulher não performa da maneira que esperamos, sobre ela recai todo tipo de comentårio nefasto.
Para mim, seu texto foi mais uma dessas lufadas de vento que me fazem seguir em outros rumos. Aprendendo aqui e ali sobre outras formas de comunicar e de observar o que estĂĄ ao meu redor.
Obrigado!
meu deus SIM!!!!!!! texto lindo e importantĂssimo amiga â€ïž